Professor Airton Santos
“São Cosme mandou fazer
Duas camisinha azul,
No dia da festa dele,
São Cosme quer caruru
Vadeia Cosme, vadeia”
Nascer no dia 27 de setembro, ou nesse mês, parir gêmeos, ser filho ou parente de devoto e herdar tal compromisso familiar, constituem elementos motivadores para cultuar Cosme e Damião nos lares católicos. Além disso, ser dotado dessas características, são razões suficientes para que as personagens envolvidas nesse processo, sejam o centro das atenções. As histórias de fé mostram que os indivíduos, sentem-se “obrigados” a fazer o caruru e /ou cultuar de alguma maneira os Cosmes, quando são acometidos por algum fator que impõe a presença desses Santos em suas vidas. Por isso, dar o caruru, é revestido de obrigação moral do devoto com o Santo. É uma ação carregada de coerção imposta por um imaginário que pactua do princípio que, “quem tem gêmeos e não quiser festejar, no céu não há de entrar”, “se começou não pode parar”, “quem nasce no dia do santo, caruru tem que oferendar”, dentre outras normas sociais estabelecidas oralmente.
É consenso que, “nascer no mês de setembro, seja sinal de muitas bênçãos dos santos gêmeos e, a partir disso, haja a necessidade de devoção, principalmente se houver, o caruru que, ritualizado, desde formas mais complexas, até os simples atos de distribuição de balas e doces como oferendas, cumpram o acordo pactuado, acreditando-se que, atraiam boas vibrações emanadas pelos Santos gêmeos. Diversas são as manifestações expressadas para agradá-los. O caruru, por exemplo, existe na festa sem muita explicação ontológica, participando dessa tradição por convenção social estabelecida. Assim, seguindo os costumes passados por gerações, quem nasce no dia do Santo, deve dar caruru, mesmo que não seja de preceito. A felicidade, contentamento, estado de glória e reza é geral, principalmente no Recôncavo Baiano, onde tudo parece ser mágico e envolto num campo sensorial de cheiros, sons, sabores, imagens e danças. Após toda reverência a Cosme e Damião, geralmente ocorre um samba, até a hora convencionada para seu término, porque afinal, todos trabalham, com exceção dos finais de semana, numa clara separação entre o sagrado que pertence a Cosme e Damião e, o profano das atitudes de todos que participam da festa para comer, beber e sambar. Nessa festa, o Santo não come, mas o povo o faz com fartura, deliciando-se das iguarias afro-baianas tais como: caruru, vatapá, arroz branco, xinxim de galinha, farofa de azeite e feijão fradinho.
No entanto, existe uma curiosidade geral a respeito da origem da crença nos Santos católicos. É fato, que cada pessoa tem um relato próprio, uma concepção de quem foram Cosme e Damião e, o porquê da festa e do culto. Mas as crenças mais corriqueiras relatam que se tratavam de irmãos gêmeos e médicos de profissão, que viveram na Ásia Menor, entre os séculos III e IV. Desde jovens eram reconhecidos por suas habilidades como médicos. Como proeza, conseguiram unir o trabalho científico à confiança na fé e no poder da oração, buscando ampliar a saúde do corpo e da alma. Devido a perseguição de Diocleciano, imperador romano, no ano 300 D.C., foram presos por serem considerados inimigos dos deuses e acusados de usar feitiçarias e meios diabólicos para disfarçar as curas. Tendo em vista as acusações, as respostas deles eram sempre: nós curamos as doenças em nome de Jesus Cristo e pelo seu poder. Foram executados três anos após sua prisão. A história dos Santos gêmeos ficou mais interessante com o encontro das culturas africanas com a portuguesa, união chamada de sincretismo. O sincretismo é um processo que se propõe resolver uma situação de conflito cultural. Neste, a principal característica é a luta pelo “status”, ou seja, o esforço empreendido à ideia que o indivíduo ou o grupo tem da função que desempenha dentro de sua cultura.
O sincretismo abrange, no seu desenvolvimento como processo de interação cultural e, na sua função de prevenir, reduzir ou anular conflitos, duas fases que, ao nosso ver, se podem comparar aos processos de acomodação e assimilação. Os negros viam nas divindades estranhas, a encarnação de uma força que lhes parecia poderosa. Daí pediam ao deus do seu senhor que abrandasse a sua cólera (sentimento sinistro ante o ritual estranho) como pediam proteção aos seus deuses possantes. Entretanto, a princípio, o que havia, simplesmente, era uma aparente correspondência, conscientemente estabelecida, entre os santos do hagiológio cristão e as divindades do panteão africano. Isto bastava para reduzir o conflito religioso, em grande parte agravado pelo estado de escravidão. Em sua mitologia, os africanos tinham em Iansã, a mãe dos Ibejis, correspondentes a Santa Bárbara e, Cosme e Damião. Os laços de família estão ali estabelecidos, pois que, mãe e filhos vivem juntinhos em seu altar, cultuados com flores e velas.
As louvações, os cânticos, o ritmo dos atabaques, as gesticulações, a coreografia, tudo, enfim, condiz com a natureza do Orixá que está sendo celebrado. Ibeji, Ibejis e Orixás Ibejis são termos mais utilizados para se referir aos santos gêmeos São Cosme e São Damião. Esse é o único Orixá representado de forma dupla que simboliza o nascimento, a vida, a alegria, a felicidade e, todas as coisas boas, decorrentes desses sentimentos puros. O Orixá é o protetor das crianças e das coisas inocentes. Quando se fala em Ibejis, é comum associá-los à inocência com que as crianças veem a vida, pois eles possuem essas mesmas características. Ibeji é o nome dado na nação Ketu, ou Vunji nas nações Angola e Congo. É a divindade da brincadeira, da alegria. A sua regência está ligada à infância, pois Ibeji é tudo que existe de bom, belo e puro; uma criança pode nos mostrar o seu sorriso, sua alegria, sua felicidade, o seu falar, os olhos brilhantes; pode também, fazer com que possamos valorizar a natureza, sua beleza e perfume das flores; o canto dos pássaros e suas evoluções durante o voo. Eis Ibejis e suas funções, eis a vida em todo seu esplendor.
Ao menos para manter vivo, esse importante Orixá, procure dar felicidade a uma criança. Transmita essa felicidade, contagie seu próximo com ela. Encante Ibeji com a magia do sorriso, com o amor de uma criança e, seja Ibeji feliz. Lembremo-nos que, tudo de bom, que nos aconteceu na infância, foi regido, gerado e administrado por Ibeji. Ele já viveu todas as felicidades e travessuras que todos nós, seres humanos vivemos. Portanto, uma figura muito importante, devido à sua representatividade da vida. A lenda, a história e a magia de Ibeji, acontecem a cada momento feliz de uma criança, pois elas são fonte de muita alegria e, garantia de continuidade da espécie. Louvar, celebrar e festejar Ibejis consiste no tradicional banquete, regado a muito caruru, oferecido às crianças (erês em iorubá), por grande parte das famílias baianas, tenham elas, vínculo ou não com as religiões afro-brasileiras.
Este trabalho foi
inspirado, desenvolvido
e dedicado a Dona
Naná (minha mãe
terrena) de quem tive
o privilégio de herdar
os sonhos, e compartilhá-
los com meus irmãos
representantes de Ibeji.
Airton Santos
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. 3ª Ed. Uberlândia: EDUFU, 2007.
DURKHEIM, Émile. As regras do Método Sociológico. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2007.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.
SOUZA JÚNIOR, Vilson Caetano de. Na palma de minha mão: temas afro-brasileiros e questões contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2011.
BASTIDE. Roger – Contribuição ao estudo do sincretismo católico fetichista. In Boletim LIX, da Fac. Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo, 1946.
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