por Renato Lima
Ela estava cansada, exausta, morta, acabada, desfalecida e ainda faltava doze meses para sair de férias quando o patrocinador ligou, de uma hora para outra, tentando lhe empurrar um trabalho difícil, chato, impossível e fora da área de conforto daquela bailarina que havia se suicidado dias atrás.
O filósofo Byung-Chul Han defende que a sociedade atualizada aprecie o comportamento de uma alta performance, o resultado e a máxima produtividade.
Esse tal patrocinador em tempos de pandemia se comportava justamente com este conceito de resultado imediato.
Ela tentou justificar dizendo - O imediatismo humano chega a ser uma ameaça e por isso podemos acabar nossos dias como os dinossauros, extintos por nossa brutalidade de querer tudo agora.- Então a bailarina se despediu do contratante, suposto patrono da obra pretendendo descer a ladeira rio abaixo em busca de um possível descanso, levada pelos poemas do então “fiquem em casa”, pois ela não tinha energia para imaginar o futuro. A extinção global pode sim acontecer, de fato, se tais agoniados que buscam contratar jovens bailarinas continuarem com essa pressa de subir no palco da vida antes da hora.
Ela ainda completou - Fico preocupada com isso, é possível que estejamos em uma das mais difíceis eras da história, onde os homens colocam os carros na frente dos burros e sua última palavra ultrapassa a fala feminina em um suposto manterrupting ancestral.
Nestes argumentos filosóficos ou embasados em evidências para se proteger, a bailarina enfim se despediu e seguiu seu caminho sem mais respostas, pois a neurastenia criativa dela naquele dia estava acompanhada do medo pandêmico e a incômoda insatisfação de dançar sozinha frente ao espelho de um computador inerte e frio, a famosa live forçada da vida moderna.
No entanto ela teve um breve momento de lucidez enquanto tomava um chá com o rosto virado para fora da janela, respirando aos poucos e sambando os olhos na rua com medo do invisível vírus que assolava naquela época. Em seus pensamentos a bailarina formosa, intacta, bela, linda, trabalhada no calcanhar equilibrado, buscava respostas para seu próprio dilúvio de palavras frente ao modo masculino do tal contratante.
Voltou a fazer uma longa pausa entre olhar para a rua e degustar o chá, e logo pensou mastigando os pensamentos como quem está remoendo “sucrilhos” por dentro de si.
- Será que fui também grosseira, ao negar daquela forma um trabalho a ser preparado em apenas um dia, onde o prazo máximo para uma humilde bailarina seria pelo menos em dois meses?
- Voltando seus argumentos para dentro ela pensou por cima do muro, ultrapassando todas as possibilidades de estar incorreta com suas decisões assertivas e acabou, por fim, concluindo o dia com o tal pensamento.
- Meu corpo minhas regras, eu sou a mulher dentro de mim, essa linda mulher da música de Simone, que se intitula livre, livre para o amor, e serei assim até que acabem esses dias de inferno ou até que meu chá chegue ao fim.
- Ela fechou a janela e se preparou para dormir, pois no outro dia teria que sair para mais uma jornada de dias infernais.
Renato Lima é ator, diretor teatral, artista plástico, escritor, psicanalista clinico, pedagogo, historiador, pós-graduado em psicodrama. Conheça um pouco mais sobre ele visitando seu perfil https://www.laurocriativa.com.br/inventario/renatolima
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