Somos criadores por excelência. Criamos coisas necessárias em nosso dia-a-dia, que por sua praticidade facilita nossas vidas, mas, para além disso, criamos maravilhas, que excedem em muito, tudo que já foi realizado anteriormente, não só pela grandeza da imaginação de que somos portadores, mas, também pelo acúmulo de experiências dos nossos antepassados.
Criamos por inspiração, ao nos agruparmos, normalmente por necessidade de sobrevivência. Criamos, porque transbordamos sentimentos, pela sensibilidade às artes, pelo encanto, pela magia, pela religião e, pelos mistérios insondáveis do universo. No entanto, envidar esforços criativos, no sentido de canalizar e atender as demandas das sociedades foram, durante muito tempo, as prioridades de seus membros.
A excelência da criação, encontra-se, menos na genialidade, do que na originalidade das ideias postas em prática e abraçadas por agrupamentos e comunidades humanas que, limitadas pela escassez, põem em marcha a dinâmica dos pensares e fazeres tão peculiares e, ao mesmo tempo, diversos, ante universos plurais e ricamente representados.
As muitas dimensões da criação, embora muito importantes, não serão aqui abordadas, pela escassez de espaço, mas, também pelo aspecto sintético das metáforas que não logram alcançar horizontes mais vastos. Ater-nos-emos então, a um elemento cristão popularizado, oriundo da Península Ibérica, a Folia de Reis, tradição iniciada na alta Idade Média em Portugal e Espanha e, celebrada até hoje, nesses países.
Dançar e cantar diante do sagrado é uma antiquíssima tradição judaica. O cristianismo, desde seus primórdios, adotou essa tradição nos cultos religiosos, cultivando a dança, coros infantis, instrumentos musicais variados e, festividades religiosas com objetivos de celebrar e louvar as divindades do panteão católico. Anexar a folia, constituiu algo natural, diante de suas características.
Folia foi uma dança popular, profana, costumeira em Portugal nos séculos XVI e XVII. Uma dança alegre, que foi trazida para o Brasil Colônia, pelos idos do século XVII, caindo no gosto popular que, de forma heterogênea, tratou de adaptar-se às formas e expressões locais, tornando-se uma das festas culturais mais ricas do folclore brasileiro. É o ritual profano ou católico popularizado do nascimento de Jesus.
Folia de Reis, Companhia de Reis, Reisado, Festa de Santos Reis, Terno de Reis, é uma tradição comum e celebrada nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, interior de São Paulo, Goiás, Espírito Santo e Bahia. Começa em 24.12 e termina em 06.01, com a queima da palhinha que simboliza, o local em que Jesus foi acomodado. Nessa ocasião, cantam-se e dançam-se toadas em celebração ao nascimento de Jesus e seu encontro com os três reis magos.
A cultura popular, em sendo diversamente heterogênea, abriga diferentes manifestações para o mesmo fenômeno cultural. Assim, as plurais expressões folclóricas, tais como, reisados, congadas, folias de reis, terno de reis, burrinhas, queimada de palhinhas, entre outras, não partilham um mesmo traço em comum, tampouco se inserem no interior de um sistema único.
Fazendo parte do catolicismo popular, longe da presença e do controle direto de agentes eclesiásticos, o ritual da Folia de Reis constituiu pequenas confrarias de devotos, mestres, contra-mestres, embaixadores, gerentes e foliões distribuídos, segundo seus tons de voz e os instrumentos que tocavam. Aqui, os saberes e fazeres funcionam como elementos difusores da participação popular.
A dinâmica do processo de participação e, com base na mesma estrutura cerimonial, possibilitou a ampliação do circuito das visitações de casa em casa, introduzindo novos personagens, como palhaços, bastiões ou bonecos que acompanham a maior parte das Folias de Reis, até hoje. Contudo, é preciso lembrar que estamos falando de realidades diversas, visões de mundo e fazeres distintos. Afinal, muitos são os mestres, muitos os conhecimentos...
Acrescentando uma série de novos elementos aos do mundo camponês, tornaram aos poucos, o ritual, parte de sua cultura e, hoje, em muitos lugares, a Folia é uma prática comunitária que redefine todo um vasto território de sua passagem, envolve um número imenso de pessoas durante o “giro” e, retraduz com os símbolos do sagrado popular, aspectos tão importantes do modo de vida camponês, marcados, essencialmente, por trocas solidárias.
De Minas a Goiás, a partes dos dois Mato Grosso, pelos sertões da Bahia, de alguns cantos do Nordeste e do Maranhão, certamente encontrará, entre 25 de dezembro e 06 de janeiro, “Ternos de Reis” viajando de casa em casa e, em cada uma, repetindo as cerimônias devocionais do ritual. De estado para estado, de região para região em cada estado, de terno para terno, de mestre para mestre, há variações e diferenças de estilo.
Iniciada com características urbanas, a Folia de Reis adaptou-se muito bem ao contexto rural, ganhando uma dimensão comunitária, porque, incorporou elementos do contexto camponês, perdeu elementos urbanos e incorporou os da cultura de cada região rural para onde foi. A intensificação do êxodo rural, a partir da segunda metade do século vinte, possibilitou, além da fragmentação cultural, a volta dos Ternos de Reis à cidade, quando voltaram a readaptar uma série de elementos da estrutura ritual.
A separação entre o domínio eclesiástico erudito e o domínio popular é tão grande, que todo o ciclo natalino das Folias de Santos Reis dispensa, sem qualquer dificuldade, a presença de padres. Na maior parte do território nacional, os bandos de anunciadores populares do nascimento de Jesus fazem a sua jornada, longe dos olhos da Igreja, mas próximos da Estrela D’alva, ao sabor da natureza.
Em um mesmo ano, grupos rituais de foliões de Santos Reis sairão em dezembro ou janeiro pelos cantos de sertão, absolutamente distantes de agências de turismo e influências eruditas. Outros, circularão pelas cidades e, com uma frequência cada vez maior, alguns irão apresentar-se em programas sertanejos de rádio ou televisão, o que é corriqueiro em Minas e Goiás, mas raro em outras regiões.
Há várias Folias de Reis nas gravações musicais na região sudeste. “Caliz Bento”, que Milton Nascimento canta no Gerais, é toada de congos ou foliões. Toda gente da roça conhece. Muitas duplas sertanejas gravam uma ou duas faixas de folias. Alguns cantores são quase especialistas em gravá-las. Que o diga a dupla Moreno e Moreninho com “Hino de Reis”, “Folia de Reis” e “Capelinha de Santos Reis”.
No Recôncavo Baiano, a tradição é forte. Em Conceição do Almeida, as pastoras da mestra Marina continuam atuantes e encantadoras, resistindo ao tempo e às inovações. O Terno de Reis da mestra Lilia, que há muito deixou de existir, privilegiou por gerações, o folclore local com muito amor e dedicação. É a consciência desse mundo fantástico, que constitui o privilégio de pessoas iluminadas. Um povo feliz.
É a sensação de pertencimento, a consciência das ramificações, repleta de memórias que extasiam o ser, plenificando a alma com significados singulares. São esses, os símbolos, que carregam aqueles que tem a leveza dos fazeres, a delicadeza do pensar e, o amor em sua expressão mais profunda. São como rios que deixam suas águas se misturarem a afluentes, tornando-se mais forte ao longo do seu curso, fluindo e possibilitando a vida.
Estrela D’alva que, nos céus do Hemisfério Sul, inspira versos de amor e cânticos como o festejar dos galos anunciando a chegada de um novo dia, um novo amanhecer. Estrela que é uma oração, cheia de esperança para a humanidade sofrida. Estrela que, celebrando o nascimento do Cristo Salvador, é, também, cúmplice da lua, na celebração dos amores e nas Folias dos Santos Reis.
É dessa forma que, anos após anos, faz-se devotos, fortalece-se a fé, preserva-se a cultura e, mantendo-se a profundidade dos laços, restabelece-se o brilho dos olhos que sonham e, povoam-se de imaginação, as vidas sofridas, mas não menos esperançosas, apaixonantes e apaixonadas, daqueles que vibram, choram, sofrem, amam e, acima de tudo, vivem. Atos revolucionários em vidas simples.
“...Adeus, Deus Menino, adeus minha flor, Adeus Deus Menino, Adeus minha flor, até para o ano, se nós vivo for, até para o ano, se nós vivo for” Música de Folclore - Terno de Reis.
Airton Santos é o autor desse trabalho.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Brandão, Carlos Rodrigues - O que é folclore – Ed. Braziliense 3º edição, 1983
Ortiz, Renato – Cultura Brasileira e Identidade Nacional – Ed. Braziliense – 5º edição 1994 –
Arantes, Antonio Augusto – O que é cultura popular – Ed. Braziliense, 13º edição – 1988.
Da esquerda para direita: Prof. Me. Airton Santos, Me. da Cultura Aidê Nascimento, Dançarino Joel Daltro, Colaborador Peri Rudá.
Agradecimentos ao Mestre e Dr. Honoris Causa em Cultura Popular Artêmio da Luz e à Mestra da Cultura Popular Aidê Nascimento pelas contribuições de sempre.
Revisão e locução Cláudia Pituba
Participações: Terezinha Barros, Virgínia Teixeira, Peri Rudá, Joel Daltro, André Luan
Direção: Casa das Ideias
Produção e Editoração: Laurocriativa
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